O jornal
Público cumpre, esta terça-feira, dia 5 de Março, 23 anos de existência e de
referência na Imprensa nacional. Desejo-lhe bons pulmões para soprar a velinha de aniversário. Uma velinha que, infelizmente, me parece ser de... cemitério.
Foi no Público que
depositei uma grande atenção à reportagem da manifestação que, no dia 2 de
Março, inundou o país e recebeu, até, o olhar de órgãos de comunicação social
estrangeiros, mesmo alguns muito distantes de nós, da outra margem do
Atlântico, por exemplo, como no sábado podia observar quem pudesse dedicar
tempo a uma pesquisa pouco esforçada na internet.
Na edição de
domingo, o Público gastou 16 caracteres em manchete a reflectir uma parte
importante do que se viu na manifestação nacional: Descontentamento. São os
mesmos 16 caracteres que espelham uma parte importante do que sinto após
leitura do editorial na página 2, da estafada reportagem das páginas 4 e 6, da
análise da página 7, da reportagem das páginas 8 e 9, da reportagem da página
10, do mosaico erudito e análise de José Pacheco Pereira nas páginas 12 e 13 e,
por fim, da opinião de Vasco Pulido Valente (que tem direito a ela), tudo isto
na edição 8362 deste jornal, histórica pelo esmero com que os textos buscaram a
destruição da força e da mensagem do protesto.
Nem quero
perder, para já, muito tempo com as científicas conclusões em redor dos números
de manifestantes que saíram às ruas – alcançadas com recurso à prodigiosa
tecnologia do Google Earth, que nos ajuda a descobrir o pormenor, tão relevante
para as nossas vidas, de em cada metro quadrado caberem no máximo quatro
pessoas. Vou mais pelo lado de outros lugares comuns nos textos, a apontarem
para uma determinação muito discutível de quem protestou, ou à ausência de
unanimidade no gritar das palavras de ordem, ambas a seguirem a linha alucinada
traçada no editorial e explicativa de um produto, tristemente, muito para lá de
distante de um mínimo da excelência com que, anos a fio, se apresentou nas
bancas todas as manhãs.
Que nas
mentes do clube de pensadores mandantes do jornal, essa poderosa imagem
(perdida) do Público lhes conferia uma autoproclamada autoridade para
questionar números de manifestantes, já se sabia… Que nessas mesmas mentes se
tenha instalado a arrogância de aferir a firmeza com que milhares de pessoas
saíram à rua a exigir uma vida com vida, não temos, propriamente, uma novidade
gritante, porque o Público, quem sabe se por opção própria ou eventual
incapacidade da direcção, repete o papel de, vá lá, vou ser amiguinho, tímido
repórter a reflectir o que se passa à sua volta quando há Povo a manifestar-se
nas ruas de Portugal.
Não sei se
será por acontecimentos deste tipo em Portugal parecerem ao Público menos fancy
para usar nas páginas do jornal ou do seu avançadíssimo jornalismo electrónico; não sei se será por acontecimentos deste tipo, na Grécia ou em
qualquer outro país em agonia, menos Portugal, parecerem ao Público exemplos do que realmente é
vendável e apelativo para os leitores; não sei se para o Público será o quem, o quê, o onde, o quando e o porquê daquilo que realmente interessa aos leitores uma
riquíssima entrevista com um doutor Roipnolowhiskey qualquer, que pinta coisas lindíssimas e canta soul gregoriano ao som de balalaica na
Universidade dos Corninhos ao Sol de Utah de Baixo...
Sinceramente,
o que vejo é um Público fiel à linha do editorial da edição deste domingo: um deslumbramento.
Neste caso, com doutrina situacionista e que nos vem aconselhar a todos para, em
vez de andarmos para aí a constituir números mais ou menos vistosos nas ruas,
cada um de nós olhar «num raio de 50 metros à volta da sua própria casa» e medir,
assim, mais eficazmente, o que já mudou com a crise. Essa sim, para o clube de
pensadores do Público, é a forma útil de sabermos como vai o mundo e nos
descontentarmos, sem necessidade de sermos milhares ou milhões nas ruas a fazer
barulho.
Tenta fazer crer o Público que foi mais ou menos (mais, digo eu) isto que aconteceu: juntaram-se umas
pessoas que decidiram repetir uma manifestação bem conseguida em Setembro de
2012, e a ideia destas pessoas era reunir o maior número possível de outras
pessoas nas ruas, com a intenção de anunciar que, desta vez é que foi,
assistiu-se à maior manifestação de sempre em Portugal.
Como se quem
saiu à rua, o fizesse motivado para estabelecer uma nova marca no Guiness Book,
ou novo recorde olímpico, projectando, para animar um bocadinho, mas sem entusiasmo,
umas palavrinhas de descontentamento contra as políticas seguidas pelo governo
e as determinações impostas pela troika, recorrendo ainda a uns cartazes
engraçados para colorir um bocado a coisa. Faltou ao Público dizer que o
movimento Que se Lixe a Troika ocultou parte do seu próprio nome: Que se Lixe a
Troika, a malta gosta é de fazer número.
A questão
dos números, da medição de pessoas presentes na rua num dia em que o país (e o
estrangeiro) viu, de novo, o povo a lutar, é recorrente. Nunca ninguém avança
com uma certeza científica sobre esse pormenor. Nunca? Não… Uma pequena
parte da Imprensa portuguesa descobriu a poção mágica que tudo esclarece: o
Google Earth, que combinado com sábios conhecimentos matemáticos e
filosóficos permite chegar à grande e indiscutível verdade. A verdade do clube
de pensadores do Público.
No editorial
deste domingo, conclui-se: «Quando deixamos a métrica geográfica e pensamos no
círculo de familiares, amigos e conhecidos, já poucos serão os portugueses – se
algum – que não conhecem alguém próximo que não tem trabalho. A crise, que começou
por ser um problema de alguns, é hoje a realidade de todos». Eis uma grande
verdade apresentada pelo clube de pensadores do jornal. A crise é de todos,
minha, nossa, vossa, também de quem foi despedido do Público e de quem, por
consequência daquela, vá lá, zanga com Miguel Relvas, saiu do jornal.
É também a
crise dos milhares que, unanimemente, e no Porto, onde estive a manifestar-me,
gritaram pela demissão deste governo. E que na Guarda, na Covilhã, em Braga, em
Coimbra, em Faro, no Funchal, por 40 cidades deste país e do mundo fizeram o mesmo, ainda que a edição deste
domingo do Público praticamente não tenha observado a dimensão do protesto além
das fronteiras de... Lisboa. O resto, fora da capital, foi paisagem, e paisagem, sobretudo a portuguesa, tem de ser suficientemente esotérica para a elite do clube de pensadores
do jornal lhe dedicar antena e visibilidade.
Um jornal
que, em editorial, afirma que «não é preciso matemática para medir a insatisfação
de Portugal», deu-se ao trabalho de buscar científicas conclusões sobre o
número de manifestantes saídos às ruas, suportado nas lentes de alta precisão do
Google, dispensáveis, no entanto, para lermos a verdadeira mensagem do Público:
estejam lá quietos que já sabemos o quanto a malta está lixada, não é preciso
virem para a rua gritar. É o traço situacionista na corrente de escrita mandante
do Público, aos 23 de idade, a comportar-se como um jotinha com necessidades de
agradar.
«Empolar só
prejudica a imagem», oferece o conselho cosmético o editorial de um Público
preocupado em desviar a questão para o número dos manifestantes, raspando,
muito levemente, no fundamental: o povo está no cadafalso. E é inacreditável
como um jornal se coloca neste papel de censor, quando devia gritar, diariamente,
pela liberdade de expressão – que não se esgota, com certeza, na opinião de
Vasco Pulido Valente, ou de senhores doutores a quem fica bem ouvir para encher
chouriços.
O que
aconteceu, independentemente do número de pessoas nas ruas, foram muitas
gargantas enrouquecerem ainda mais por culpa do desespero a que estamos condenados. Mas isso, do
desespero, já se sabia, diz-nos o Público, descontente com o barulho que a malta andou para aí a fazer e a agarrar-se àquilo dos números numa miserável tentativa de distrair, de desviar a atenção da única questão que levou as pessoas outra vez à rua: o divórcio com as políticas da alternância e os agiotas da troika.
Ao Público, um bricalhão com o desespero das pessoas, desejo agora bons pulmões para
soprar a velinha de aniversário. Uma velinha que, infelizmente, me parece ser
de... cemitério.